segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

O Auriga

O Auriga, de Mary Renault
The Charioteer
Inglaterra, 1953
Lançado no Brasil pela editora Mandarim em 1996. Tradução de Aulyde Soares Rodrigues.

Num hospital militar no interior da Inglaterra, durante a II Guerra, o soldado Laurie "Spud" Odell, de vinte e poucos anos, se recupera de um ferimento na perna que quase o matou, na evacuação de Dunquerque. Ali ele se aproxima de Andrew, um jovem Objetor Consciente - um pacifista que, por se recusar a ir para a guerra por razões morais ou religiosos, é colocado sob prisão e trabalhos forçados). Mas logo depois, Odell reencontra um amigo de infância, Ralph Lanyon, que fora expulso do colégio por motivos obscuros e a quem Laurie costumava idolatrar. Num flashback, ficamos sabendo que no dia de sua expulsão, Ralph entregara para Laurie um exemplar do Fedro de Platão, o que por si só já era um código de identificação.

Laurie é inteligente, com uma grande sensibilidade cultivada por leituras clássicas. Divide seus dias entre o hospital, onde mantém um relacionamento platônico com Andrew, e os dias de folga, em que convive com Ralph e frequenta a comunidade clandestina de homossexuais servindo nas forças armadas.
"Só depois que se tornou impossível é que ficou tão fácil. É como a lei seca, com os bêbados e os ladrões fazendo fortunas com a bebida, todos perdendo completamente o gosto pela bebida (...) Você não pode fazer um bom vinho numa banheira do sotão. Precisa de sol, chuva e ar fresco, precisa ter orgulho no seu trabalho e precisa contar ao mundo o que está fazendo. Só que você pode viver sem bebida, se precisar, mas não pode viver sem amor".
Um dos momentos centrais do livro, quando Laurie reencontra Ralph pela primeira vez desde o colégio, se dá durante uma longa festa onde os convidados não param de chegar e as pessoas vão ficando progressivamente mais bêbadas. A autora vai desfraldando uma gama de tipos únicos e inesquecíveis, com uma atenção detalhista para todo tipo de tiques de linguagens peculiares da época, desde um piloto de caça efeminado, que vive a base de remédios para lidar com a pressão, à um ciumento escandaloso, que encena uma tentativa de suicídio para recuperar a atenção dos demais.
"A festa estava animada. Laurie assistia a tudo com uma espécie de distanciamento. Depois de uma procura de anos, ele finalmente descobrira do que estava tentando fugir, porque havia recusado o primeiro convite de Sandy, e qual tinha sido seu problema com Charles. Era também o problema de nove entre cada dez pessoas que estavam ali aquela noite. Eles eram especialistas. Não se tratava somente de terem aceito as próprias limitações, como Laurie estava pronto para aceitar as suas, fiel à sua humanidade, se não ao seu sexo, e acrescentando uma humildade extra ao difícil estudo da experiência humana. Eles tinham se identificado com as suas limitações, faziam delas uma carreira. Afastaram-se de todas as outras realidades e enrodilharam-se num casulo, como num útero."
Ter sido escrito em 1953, uma década marcada pelo conformismo e intolerância à contestação, o livro já merecia louvores. Do ponto de vista literário, ter um final feliz numa época que ainda só tolerava uma narrativa gay enquanto tragédia - que Gregory Woods, em seu A History of Gay Literature, chamou de "o mito da bicha trágica" legado pelo julgamento de Oscar Wilde - é por si só uma ousadia, uma escolha política e ideológica em si.

Política também é a escolha de mostrar as elevadas discussões de Laurie, Ralph e Andrew baseadas nas leituras do Banquete e do Fedro de Platão (o título do livro é uma referência a este último: o auriga é o condutor da carruagem dos altos e baixos sentimentos do Homem), em contraste com o quáquáquá mundano e vulgar da comunidade gay que frequentam. É um voto de desconfiança, uma tomada de posição quanto à idéia de rótulos fixos que a organização de uma sociedade pode sugerir.
"Ele repetia insistentemente que eu era bicha. Eu nunca tinha ouvido a palavra e não gostei. Era como se estivesse me isolando do mundo na companhia de pessoas com as quais eu não tinha muita coisa em comum, uma metade detestando a outra, apenas permanecendo juntas para terem apoio mútuo".
Mary Renault tem uma sensibilidade tremenda para capturar os detalhes sutis e ao mesmo tempo complexos da evolução dos sentimentos de seus personagens. Seu personagens falam abertamente sobre sentimentos, mas a escolha de palavras é elíptica, sempre evitando a abordagem direta que, na sua visão, poderia vulgarizasse esses mesmos sentimentos ao enclausurá-los em rótulos (e assustar leitores da época). Outro contraste é o mundo sombrio da Europa em guerra, com a libertação bucólica e pastoral proporcionada pela aceitação emocional de seus personagens.
Acima de tudo é um livro intensamente afetivo.

Mary Renault

Mary Renault dedicou a maior parte de sua carreira à romances históricos ambientados na Grécia Antiga, em geral sobre Alexandre da Macedônia (O Menino Persa foi uma das bases para o filme Alexandre, de Oliver Stone). Tudo leva a crer, porém, que O Auriga tenha sido seu romance mais pessoal, ao unir duas experiências próprias: assim como Laurie e Ralph, foi na escola de enfermagem que ela conheceu sua companheira de toda a vida, Julie Mullard, e assim como Andrew no livro, as duas atendeream os feridos de Dunquerque durante a II Guerra. A ética do amor e a identidade própria dentro de uma comunidade sendo seus temas mais caros.

A edição de O Auriga em português, pela Mandarim é facilmente encontrada em sebos. O livro pode ser encontrado facilmente.

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