sexta-feira, 27 de maio de 2016

The Wild Boys

The Wild Boys: A Book of the Dead
de William S. Burroughs
EUA, 1971
Até onde sei, nunca lançado no Brasil.

Não sei como Burroughs funciona para outros leitores, mas a questão comigo é que, mesmo já tendo lido três livros dele, desistido de um quarto (larguei O Almoço Nu pela metade) e estar indo já para um quinto, não me sinto à vontade para dizer que entendi qual é a proposta dele - não sei nem dizer exatamente se gosto dos livros dele. Mas tem algo de hipnótico no modo como ele conjura idéias, palavras, repetições obssessivas, no próprio modo desconexo de criar diversas vinhetas que fazem pouco sentido como narrativas coesas (mas fazem um pouc), parecem compartilhar de uma espécie de aura comum.
De novo: não sei como Burroughs funciona com outros leitores, mas cada vez que leio um livro dele, tenho a sensação muito clara de que é o mais próximo que poderia chegar, em prosa, de entrar no sonho de outra pessoa, num estado de fluxo de consciência semelhante a um pesadelo mítico-erótico.

Sobre o que é The Wild Boys, afinal? É difícil dizer. Certo é que se passa num futuro semi-apocalíptico, onde tribos de garotos guerrilheiros gays combatem as forças organizadas do que restou da sociedade. Isso tudo, porém, só se torna claro no terço final do livro. Até então, o que se tem é uma série de capítulos-vinhetas que, pela fusão de idéias, cria a possibilidade de uma interpretação. São elas:
• Um capitulo inicial que não parece se relacionar de modo algum com o resto do livro, sobre uma favela mexicana.
• Um homem convocado para assistir vídeos. Neles, um sacerdote executa um prisioneiro através de um ritual envolvendo uma centopéia de cobre; o governo americano tenta usar um deus-serpente maia como arma e acaba sendo destruido.
• Audrey, um "menino pálido e magro com o rosto marcado por feridas espirituais" é levado por um dos Garotos Selvagens à um peep show. Numa série de imagens desconexas a que ele assiste, testemunha um ritual indigena onde garotos se unem a enormes "planta-carne" fálicas, do qual coletam a seiva.
• Numa Marrakesh apocalíptica, uma elite isolada em fortalezas e dirigíveis se entrega à prazeres hedonistas.
• Sacerdotes usam a seiva das plantas-carne para injetar vida em esqueletos, criando os primeiros Garotos Selvagens.
• Um vírus que é uma idéia (um meme?) que se espalha através da imagem de um menino sorrindo.
• Relatos sobre garotos por todo o país abandonando suas famílias para se juntarem aos Garotos Selvagens.
• Um exército é organizado e parte para o combate, mas acaba sendo destruído.
• Várias tribos/gangues de Garotos Selvagens, com suas identificações totêmicas, encontrando-se instintivamente para um ritual de ressureição comunal chamado Zimbu Xolotl.
• Um narrador que encontra um dos garotos selvagens e acaba se relacionando com ele.

Burroughs descreve conjuntos de imagens fortes e impressionantes, que se alterna entre o grotesco de um quadro de Bosch com uma furia violenta num nível asteca...
Eu vi o Coronel esvaziar seu revolver e ir contra dez garotos selvagens. No momento seguinte eles atiraram sua cabeça ensanguentada no ar e começaram um jogo de bola. Apenas ao entardescer os garotos selvagens foram embora. Deixaram os corpos com as peles arrancadas e muitas genitais decepadas. Com elas os garotos selvagens fazem pequenas testículos onde carregam seu hashishe e seu khat.
...ora se tornam delírios masturbatórios igualmente furiosos, onde rapazes seminus e semi-selvangens percorrem as ruínas abandonadas das cidades em patins, skates e bicicletas usando apenas tangas coloridas e pinturas corporais estranhas, armados com facas bowie e fazendo sexo com a rapidez e a indiferença de quem dá bom-dia.
Um garoto numa bicicleta vermelha passou correndo. Ele fez uma volta rápida e freiou no meio-fio ao nosso lado. Estava nu exceto pela sunga jockstrap, cinto e sapatos negros flexíveis sua pele vermelha como terracota macia sem poros pele esticada sobre as maças do rosto olhos profundamente negros e cabelos negros. Em seu cinto havia uma faca bowie de dezoito polegadas com punho de soqueira. Ele não disse nenhum palavra de saudação. Ele ficou ali com um pé no meio-fio olhando para Dib. Suas orelhas que despontavam da cabeça tremeram de leve e seus olhos cintilaram. Ele lambeu os lábios e disse uma palavra em uma lingua desconhecida para mim. O Dib assentiu. Ele virou-se para mim.  "Ele muito excitado. Esta dirigindo três dias. Trepar agora falar depois".

Esses trechos são traduções livres. A verdade é que parte dos conceitos apresentados em The Wild Boys parecem só fazer sentido quando complementados com os de Port of Saints, que funciona como continuação (os Wild Boys ressurgem nela, e há ecos deles também em Cidades da Noite Escarlate). 

Wild Boys never lose it
Russel Mulcahy, diretor de Highlander e O Sombra, tentou transformar esse caos num filme, que teria Duran Duran cuidando da música tema da mesma forma como já fizera com o Queen em Highlander. O filme nunca foi feito, mas a música sim: Wild Boys, do Duran Duran, com um videoclipe dirigido por Mulcahy aproveitando algumas idéias visuais para a adaptação do livro.

E em alguma entrevista que se perde no tempo, David Bowie diz ter se inspirado o visual de Ziggy Stardust numa fusão entre os adolescentes de Laranja Mecânica com os de Wild Boys, bem como o nome artístico Bowie teria sido inspirado nas facas Bowie descritas no livro de Burroughs.

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Easy Riders

"Embora ele (Don Simpson) fosse agressivamente hétero, ele pegou a cultura gay - com sua confluência de moda, cinema, discoteca e publicidade - e a utilizou para unir os filmes "ingênuos" de high-concept que Spielberg e Lucas fizeram nos anos 70 com filmes altamente planejados como Flashdance, Top Gun e a série Um Tira da Pesada, nos anos 80. (Lembre-se da discussão sobre o subtexto gay de Top Gun feita por Quentin Tarantino em Vem Dormir Comigo). Não foi por acaso que a idéia do filme high-concept nasceu e se desenvolveu na Paramount, que algumas pessoas consideram o estúdio mais gay de Hollywood. Simpson estava para a cultura gay como Elvis Presley para o rhythm and blues, e apropriou-se dela, reapresentando-a para um público hetero. Os blockbusters que Simpson fez com Jerry Bruckheimer eram apenas pretextos para astros e estrelas se exibirem numa série de quadros cinematográficos acompanhadas de uma trilha barulhenta. Se, como Susan Sontag observou, a experiência essencial de ir ao cinema é o desejo de "ser raptado pelo filme, de ser possuído pela presença física da imagem, os filmes de Simpson-Bruckheimer - Top Gun, Dias de Trovão - , levavam tudo muito além. Eles pegavam a platéia à força. Era quase um estupro".

Peter Biskind, Easy Riders, Raging Bulls: Como a Geração Sexo-Drogas-Rock'n'Roll salvou Hollywood.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Maurice


Maurice, de E. M. Forster
Inglaterra, 1971
Publicado no Brasil pela Editora Globo em 2006, em tradução de Marcelo Pen.

Edward Morgan Forster já era conhecido como o autor de Retorno a Howard's End e Um Quarto com Vista, quando começou a escrever Maurice entre 1913 e 1914, às vésperas da I Guerra. Segundo suas instruções, o romance porém só foi publicado após sua morte, em 1971 - para um inglês eduardiano como Forster, sair do armário era pior que a morte. O livro é dedicado "para um ano melhor".

Maurice nasceu de uma visita de Forster a um casal de amigos, o poeta Edward Carpenter e seu companheiro George Merrill, que viviam juntos e felizes apesar da época em que nasceram. Para Forster, que pertencia à geração que viu Oscar Wilde ser condenado, escrever uma história de amor homossexual com final feliz era uma necessidade de afirmação política. No pós-escrito ao livro, que acompanha a edição da Globo, Forster diz que "um final feliz era imperativo. Eu estava determinado que, ao menos na ficção, dois homens poderiam se apaixonar e assim permanecer eternamente dentro do espaço que a ficção permite". O grande conflito que o livro impõe aos seus personagens, mais do que suas identidades sexuais, acaba sendo a diferença de classes.
“Uma natureza limitada como a de Maurice parece insensível, pois precisa de tempo até mesmo para sentir."
Uma Downton Abbey gay
Em Cambridge, onde estuda, o jovem de classe média Maurice conhece o aristocrático Clive Durham, herdeiro rico do interior. A atração é imediata. Os dois embarcam num relacionamento que, por força da interpretação de Clive para o Banquete e o Fedro de Platão, se mantém casto, ao crer que a consumação física o tornaria vulgar. O relacionamento atravessa a expulsão de Maurice da faculdade (por motivos alheios ao romance dos dois) e se alterna entre a propriedade rural de Penge, da família de Clive, e o apartamento londrino que os dois dividem enquanto "solteirões na cidade".
"Despertara tarde para a felicidade, mas não para a força, e podia sentir uma alegria austera, como a de um guerreiro que ficou sem lar, mas que permanece plenamente armado.”
Mas Clive, após uma viagem decepcionante para a Grécia, supera o que acredita ser apenas uma fase, casa-se de modo burocrático e mantém um relacionamento com a esposa onde até o sexo é uma questão formal. Maurice, incapaz de lidar com a rejeição, se entrega à depressão, frequentando sessões de hipnose em busca de uma "cura gay". Aos poucos aceita a ideia de viver uma meia-vida, ocupando um espaço de semi-invisibilidade que cruza com outra: a social, na figura do jovem guarda-caças Alec. Há encontros e desencontros que culminam num momento tocante dentro do Museu Britânico, que conduz à um confronto final e tristonho entre Maurice e Clive.
“Eu teria sido seu até o fim se quisesse ficar comigo, mas agora sou de outra pessoa - não posso ficar me lamuriando para sempre - e ele é meu de um modo que o ofende, mas por que não para de ficar sendo ofendido e se ocupa de sua própria felicidade?"
Gregory Woods nota que, se Maurice tivesse um final trágico, teria sido tranquilamente publicado em sua época, quando a figura do homossexual era aceita contanto atada à necessidade de um final punitivo. "Forster reconheceu o que acontecia na literatura do recém-nomeado "indivíduo homossexual", mas não conseguia encontrar os recursos com o qual dar conta da nova tendência". De modo tragicômico, ao ser publicado em 1971, apenas dois anos após Stonewall, já não havia mais escândalo algum para causar.

Invisibilidades
A mesma invisibilidade que oculta Maurice dos olhos da sua sociedade, possibilita que ele viva plenamente e planeje sua fuga com Alex - para o interior, para o campo, para o espaço mítico dos bosques. O livro foi adaptado para os cinemas em 1987 pela dupla Ismail Merchant e James Ivory, dupla que se consagrara pouco antes com o oscarizado Uma Janela para o Amor (adaptado do Um Quarto com Vista), que nos anos seguinte ainda adaptaria Retorno a Howard's End de Forster e o Vestígios do Dia de Kazuo Ishiguro. Maurice concorreu ao Oscar de Melhor Figurino e lançou a carreira do então novato Hugh Grant como Clive e de Rupert Graves (o Lestrade da série Sherlock) como Alec.

Sobre o filme, Roger Ebert notou o grande desafio de relacionamento entre Maurice e Alec não era tanto a barreira do preconceito sexual, quando a questão de classes, cujas barreiras rígidas não dariam aos dois recursos para superar um relacionamento para além da atração sexual.

Curiosamente, as duas figuras reais que inspiraram o livro romperam de fato essa barreira: Edward Carpenter, poeta pioneiro no ativismo pelos direitos dos homossexuais, viveu por trinta anos junto de George Merrill, que tinha origem humilde e sem educação formal. Foi numa visita à casa de ambos que, num gesto de carinho informal, o modo como Merrill tocou as costas do rígido e enrustido Forster, que este teve a ideia de uma história sobre um relacionamento duradouro entre dois homens sendo construido. Em tempos que o casamento igualitário volta à pauta, a relevância de Maurice foi discutida num artigo da revista New Yorker.

E. M. Forster
Depois que Maurice foi escrito, houve uma mudança na atitude do público quanto a esse aspecto: a conversão da ignorância e terror em familiaridade e desprezo. Não foi a mudança para o qual Edward Carpenter havia lutado. Ele ansiara por um reconhecimento generoso de uma emoção e a reintegração de algo primitivo ao dia-a-dia. (...) Não haviamos percebido que aquilo que o público realmente abomina na homossexualidade não é a coisa em si, mas o fato de ser obrigado a pensar nela. Se ela pudesse ser inserida em nosso meio de forma desapercebida ou então fosse legalizada da noite para o dia, (...) haveria poucos protestos. Infelizmente, só pode ser legalizada por um parlamento, e membros do parlamento são forçados a pensar ou fingir que pensam. - E. M. Forster

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

O Auriga

O Auriga, de Mary Renault
The Charioteer
Inglaterra, 1953
Lançado no Brasil pela editora Mandarim em 1996. Tradução de Aulyde Soares Rodrigues.

Num hospital militar no interior da Inglaterra, durante a II Guerra, o soldado Laurie "Spud" Odell, de vinte e poucos anos, se recupera de um ferimento na perna que quase o matou, na evacuação de Dunquerque. Ali ele se aproxima de Andrew, um jovem Objetor Consciente - um pacifista que, por se recusar a ir para a guerra por razões morais ou religiosos, é colocado sob prisão e trabalhos forçados). Mas logo depois, Odell reencontra um amigo de infância, Ralph Lanyon, que fora expulso do colégio por motivos obscuros e a quem Laurie costumava idolatrar. Num flashback, ficamos sabendo que no dia de sua expulsão, Ralph entregara para Laurie um exemplar do Fedro de Platão, o que por si só já era um código de identificação.

Laurie é inteligente, com uma grande sensibilidade cultivada por leituras clássicas. Divide seus dias entre o hospital, onde mantém um relacionamento platônico com Andrew, e os dias de folga, em que convive com Ralph e frequenta a comunidade clandestina de homossexuais servindo nas forças armadas.
"Só depois que se tornou impossível é que ficou tão fácil. É como a lei seca, com os bêbados e os ladrões fazendo fortunas com a bebida, todos perdendo completamente o gosto pela bebida (...) Você não pode fazer um bom vinho numa banheira do sotão. Precisa de sol, chuva e ar fresco, precisa ter orgulho no seu trabalho e precisa contar ao mundo o que está fazendo. Só que você pode viver sem bebida, se precisar, mas não pode viver sem amor".
Um dos momentos centrais do livro, quando Laurie reencontra Ralph pela primeira vez desde o colégio, se dá durante uma longa festa onde os convidados não param de chegar e as pessoas vão ficando progressivamente mais bêbadas. A autora vai desfraldando uma gama de tipos únicos e inesquecíveis, com uma atenção detalhista para todo tipo de tiques de linguagens peculiares da época, desde um piloto de caça efeminado, que vive a base de remédios para lidar com a pressão, à um ciumento escandaloso, que encena uma tentativa de suicídio para recuperar a atenção dos demais.
"A festa estava animada. Laurie assistia a tudo com uma espécie de distanciamento. Depois de uma procura de anos, ele finalmente descobrira do que estava tentando fugir, porque havia recusado o primeiro convite de Sandy, e qual tinha sido seu problema com Charles. Era também o problema de nove entre cada dez pessoas que estavam ali aquela noite. Eles eram especialistas. Não se tratava somente de terem aceito as próprias limitações, como Laurie estava pronto para aceitar as suas, fiel à sua humanidade, se não ao seu sexo, e acrescentando uma humildade extra ao difícil estudo da experiência humana. Eles tinham se identificado com as suas limitações, faziam delas uma carreira. Afastaram-se de todas as outras realidades e enrodilharam-se num casulo, como num útero."
Ter sido escrito em 1953, uma década marcada pelo conformismo e intolerância à contestação, o livro já merecia louvores. Do ponto de vista literário, ter um final feliz numa época que ainda só tolerava uma narrativa gay enquanto tragédia - que Gregory Woods, em seu A History of Gay Literature, chamou de "o mito da bicha trágica" legado pelo julgamento de Oscar Wilde - é por si só uma ousadia, uma escolha política e ideológica em si.

Política também é a escolha de mostrar as elevadas discussões de Laurie, Ralph e Andrew baseadas nas leituras do Banquete e do Fedro de Platão (o título do livro é uma referência a este último: o auriga é o condutor da carruagem dos altos e baixos sentimentos do Homem), em contraste com o quáquáquá mundano e vulgar da comunidade gay que frequentam. É um voto de desconfiança, uma tomada de posição quanto à idéia de rótulos fixos que a organização de uma sociedade pode sugerir.
"Ele repetia insistentemente que eu era bicha. Eu nunca tinha ouvido a palavra e não gostei. Era como se estivesse me isolando do mundo na companhia de pessoas com as quais eu não tinha muita coisa em comum, uma metade detestando a outra, apenas permanecendo juntas para terem apoio mútuo".
Mary Renault tem uma sensibilidade tremenda para capturar os detalhes sutis e ao mesmo tempo complexos da evolução dos sentimentos de seus personagens. Seu personagens falam abertamente sobre sentimentos, mas a escolha de palavras é elíptica, sempre evitando a abordagem direta que, na sua visão, poderia vulgarizasse esses mesmos sentimentos ao enclausurá-los em rótulos (e assustar leitores da época). Outro contraste é o mundo sombrio da Europa em guerra, com a libertação bucólica e pastoral proporcionada pela aceitação emocional de seus personagens.
Acima de tudo é um livro intensamente afetivo.

Mary Renault

Mary Renault dedicou a maior parte de sua carreira à romances históricos ambientados na Grécia Antiga, em geral sobre Alexandre da Macedônia (O Menino Persa foi uma das bases para o filme Alexandre, de Oliver Stone). Tudo leva a crer, porém, que O Auriga tenha sido seu romance mais pessoal, ao unir duas experiências próprias: assim como Laurie e Ralph, foi na escola de enfermagem que ela conheceu sua companheira de toda a vida, Julie Mullard, e assim como Andrew no livro, as duas atendeream os feridos de Dunquerque durante a II Guerra. A ética do amor e a identidade própria dentro de uma comunidade sendo seus temas mais caros.

A edição de O Auriga em português, pela Mandarim é facilmente encontrada em sebos. O livro pode ser encontrado facilmente.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

A Linha da Beleza

A Linha da Beleza, de Alan Hollinghurst
The Line of Beauty
Inglaterra, 2004
Publicado no Brasil pela Nova Fronteira em 2005 em tradução de Vera Whately

Numa tentativa de resumo temático e emocional do que é A Linha da Beleza e do impacto que esse livro teve sobre mim, listaria da seguinte forma: um rodamoinho lento e meticuloso do conservadorismo social dos anos 80, da Era Tatcher na Inglaterra, as consequências éticas do liberalismo econômico, tudo girando num rodamoinho meticuloso que tenta englobar todo o ethos de uma década, de yuppies deslumbrados com dinheiro fácil e turbinados por cocaína, o Scarface do DePalma, música clássica, Henry James e o erotismo colorido e lustroso da cena gay londrina oitentista, dos clubes do Soho e das festas nos casarões de Notting Hill. Dando liga nisso, a sombra da AIDS, o fim-de-festa e ressaca dessa geração.

É o quinto romance de Allan Hollinghurst, que tem um estilo tão elegante e fluído que por vezes dispensa a necessidade de uma trama em si. Eu poderia ficar acompanhando o protagonista Nick Guest indefinidamente flanando no mundo dos ricos e cheirados londrinos da década. A história começa em 1983: Nick Guest é gay e assumido, recém saído da faculdade de Letras, e vai morar meio que de favor, meio como agregado, na casa de seu amigo hetero Toby, cujo pai é um politico conservador de baixo-clero, cuja maior ambição é ter Margaret Tatcher como convidada em alguma festa de sua casa. Catherine, irmã de Toby e amiga de Nick, é uma maníaca depressiva com tendências suicidas, e o próprio Toby é o típico filho de classe alta que ganha coisas cada vez mais caras para suprir sua falta de interesses pelas coisas em si. A função de Nick nessa família é meio nebulosa - vários personagens questionam, afinal, o que ele faz ali? Seu papel é o de servir como "esteta oficial " da família Fedden, para quem arte existe apenas como uma forma de se adquirir status social -  quadros, saraus, discussões literárias com tomadas de opinião calculadamente inofensivas, baseadas no senso comum. Basicamente, filisteus ricos.

O livro é dividido em três partes: a primeira, o Acorde do Amor, foca na chegada de Nick na casa dos Fedden em Notting Hill, a efervescência cultural de Portobello Road e suas experiências com o primeiro namorado, um rapaz negro de subúrbio. Nick está deslumbrado com o mundo e os modos dos ricos e indiferentes, e numa passagem memorável, vai a estréia de Scarface, onde Hollinghurst dá o tom que está por vir mais adiante.
"Os críticos já haviam descrito Scarface como um filme "operístico", talvez uma forma de dizerem que era latino, barulhento e bombástico. (...) Era irracional, mas a irracionalidade ofuscante do filme parecia lançar uma suspeita de irrealidade sobre tudo o mais; seu caso com Leo, que era tão estranho, tão recente, tão irreconhecível, pareceu envolto numa atmosfera de dúvida crua mas penetrante. Ficou imaginando se teria notado Leo um ano atrás, na confusão da saída do cinema, ou guardado sua imagem e levado para casa sem conseguir dormir, pensando nele. Provavelmente não, pois uma das manias de Leo era manter-se sentado até o final de todos os créditos. De fato, só depois que tudo aquilo acabou é que Leo saiu no foyer, piscando e meneando a cabeça, intrigado com a expressão preocupada de Nick."
Na segunda parte, A quem pertence essa beleza?, pula-se para 1986, quando Nick está envolvido emocional e sexualmente com Wani Ouradi, um jovem herdeiro enrustido, filho de um milionário libanês de uma rede de supermercados. Juntos, os dois montam uma produtra , com a intenção de adaptar Henry James para o cinema (uma referência indireta às produções Merchant/Ivory), mas que na prática só serve para dar sentido ao ócio regado à cocaína dos dois. A "linha da beleza" do título - a linha curvilínea que contrasta com as formas retas e simétricas - surge com frequência, seja no título da produtora ("Ogiva"), nas carreiras de cocaína que os personagens cheiram incessantemente, ou na curvatura do traseiro do namorado de Nick.

Na terceira parte (sem spoilers), "O fim da linha", salta-se para 1987. O fim da festa oitentista do dinheiro fácil, é o momento da queda, do acúmulo de escândalos políticos, de escessos de droga e sexo que se tornam cada vez mais impessoais, mecânicos e frios, e quando os rumores da "doença" começam a se intensificar e neutralizam a liberação sexual do início da década.

É sobretudo um livro "de época", a trama avançando por uma série de elaborados eventos sociais - um sarau de música, férias na França, uma festa para Tatcher - onde Hollinghurst explora a teia de relações e sensibilidades entre seus personagens um pouco como Jane Austen. Se Jane Austen escrevesse nos anos oitenta e cheirasse muito pó.

Ainda sem spoilers, esse livro me destruiu emocionalmente. Não sei quantos dias fiquei numa ressaca literária, sem vontade de pegar outra coisa para ler, tentando digerir o final aberto que se abre para interpretações ambíguas. A jornada pessoal de Nick Guest, um dos grandes personagens da literatura inglesa do século 21, é a de uma tomada de consciência dolorosa, de que a aceitação condescendente )na figura da família Fedden) é apenas a fachada socialmente conveniente psicológica e moralmente fraca. E plenamente irrecuperável, uma vez que é rota desde a base.

O autor, Allan Hollinghurst
Allan Hollinghurst nasceu em 1954 na Inglaterra, e é autor de diversas obras de poesia e ficção, entre os quais A Biblioteca da Piscina, The Stranger's Child e The Spell. A Linha da Beleza ganhou o Man Booker Prize em 2004, e em 2006 foi adaptado para uma minissérie da BBC em três partes, com Dan Stevens (de Downton Abbey) no papel de Nick Guest, e dirigida por Andrew Davies (de O Fugitivo). Um trailer pode ser visto pode ser visto aqui.

Abrindo os trabalhos

Suponho que ninguém goste muito de rótulos, e imagino que seja basicamente pelo elemento redutor contido na ideia de que toda uma gama de possibilidades seja simplificada e reduzida à um único aspecto. Contudo, quando se trata de Literatura, ao menos no que tange a organização de uma prateleira de livros, creio que a aplicação de rótulos parece benéfica quando ajuda um leitor a encontrar mais obras no mesmo tema, estilo ou gênero.
A ideia desse blog veio ao longo do tempo, inspirada e motivada por conversas com amigos e conhecidos, reais e virtuais. A inspiração veio, inicialmente, quando visitei a Waterstone's de Picadilly, em Londres, que clamava ser a maior livraria da Europa. E lá, o que mais me impressionou foi a diversidade na separação dos livros nas prateleiras. Não uma grande sessão de literatura nacional e outra de literatura estrangeira, como acontece geralmente aqui, mas sessões específicas por temas - "romances históricos", "mangás", chegando até subgêneros específicos como "policiais escandinavos", e "literatura gay", esta com uma série de subdivisões. E por literatura gay não se entenda os livros de fotografia homoerótica lustrosos que se esconde nos cantinhos das lojas, mas autores e obras, de gêneros e subgêneros como romances históricos ou ficções literárias, que fossem de interesse para leitores LGBT.
Mas o que seria uma leitura de interesse gay? Aceitando-se que a experiência da leitura é e sempre será individual, e um livro responde ou incita questionamentos ao leitor conforme o tipo de ansiedade ou experiências muito particulares à sua vida pessoal, a certo momento notei-se que a grande maioria dos livros que lia tratavam de personagens que nunca precisaram lidar com aceitação ou não de uma identidade sexual, ou que isso influenciasse na sua forma de interagir com outros personagens. Quando a desculpa da universalidade do personagem serve apenas ao propósito de escrever (mais uma) história de homem branco hétero cristão de classe média, a universalidade se perde - é apenas a imposição de uma leitura muito restrita sobre o todo. Ou, em outros casos (o Ishmael de Moby Dick é um, o narrador de Bonequinha de Luxo é outro), a ausência de uma clara alusão à sexualidade do personagem leva à interpretação de que ele seja hetero, mesmo que vários sinais e códigos tenham sido espalhados pelo autor indicando o contrário. Ou pior ainda, quando uma voz de intensão claramente homossexual, como em metade dos Sonetos de Shakespeare, é heteronormatizada ao longo do tempo por pudores de seus tradutores, que trocam o sexo do objeto de louvores do masculino para o feminino.

Por último, é importante frisar que os comentários que faço neste blog são pessoais, e derivam da relação pessoal que desenvolvi com a leitura de cada livro, independente da importância histórica que este ou aquele teve (quando é o caso, eu saliento), ou do quanto a excelência estilística de um determinado autor indifere na minha apreciação puramente emocional do texto. A seleção dos livros foi feita com base nos meus dois critérios favoritos: o acaso e a aleatoriedade. A razão dessa pesquisa não teve nada de acadêmico, e foi razoavelmente orientada por A History of Gay Literature: The Male Tradition, de Gregory Woods, livro que busca estabelecer uma espécie de cânone ocidental de literatura de interesse homoerótico com foco na experiência gay masculina. Não tenho interesse em discussões acadêmicas (até por falta de maior embasamento teórico da minha parte, já que passei longe da faculdade de Letras) e se este blog possui um objetivo, pode-se dizer que é o de promover livros que, na minha opinião, merecem ser lembrados e discutidos. Além de servir, eventualmente, como guia de leitura para quem se interessa pelo assunto.

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Serviço:
A History of Gay Literature - The Male Tradition
Autor: Gregory Woods
Editora: Yale University Press
Ano: 1999
Tem na Amazon e na Livraria Cultura.

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