segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Maurice


Maurice, de E. M. Forster
Inglaterra, 1971
Publicado no Brasil pela Editora Globo em 2006, em tradução de Marcelo Pen.

Edward Morgan Forster já era conhecido como o autor de Retorno a Howard's End e Um Quarto com Vista, quando começou a escrever Maurice entre 1913 e 1914, às vésperas da I Guerra. Segundo suas instruções, o romance porém só foi publicado após sua morte, em 1971 - para um inglês eduardiano como Forster, sair do armário era pior que a morte. O livro é dedicado "para um ano melhor".

Maurice nasceu de uma visita de Forster a um casal de amigos, o poeta Edward Carpenter e seu companheiro George Merrill, que viviam juntos e felizes apesar da época em que nasceram. Para Forster, que pertencia à geração que viu Oscar Wilde ser condenado, escrever uma história de amor homossexual com final feliz era uma necessidade de afirmação política. No pós-escrito ao livro, que acompanha a edição da Globo, Forster diz que "um final feliz era imperativo. Eu estava determinado que, ao menos na ficção, dois homens poderiam se apaixonar e assim permanecer eternamente dentro do espaço que a ficção permite". O grande conflito que o livro impõe aos seus personagens, mais do que suas identidades sexuais, acaba sendo a diferença de classes.
“Uma natureza limitada como a de Maurice parece insensível, pois precisa de tempo até mesmo para sentir."
Uma Downton Abbey gay
Em Cambridge, onde estuda, o jovem de classe média Maurice conhece o aristocrático Clive Durham, herdeiro rico do interior. A atração é imediata. Os dois embarcam num relacionamento que, por força da interpretação de Clive para o Banquete e o Fedro de Platão, se mantém casto, ao crer que a consumação física o tornaria vulgar. O relacionamento atravessa a expulsão de Maurice da faculdade (por motivos alheios ao romance dos dois) e se alterna entre a propriedade rural de Penge, da família de Clive, e o apartamento londrino que os dois dividem enquanto "solteirões na cidade".
"Despertara tarde para a felicidade, mas não para a força, e podia sentir uma alegria austera, como a de um guerreiro que ficou sem lar, mas que permanece plenamente armado.”
Mas Clive, após uma viagem decepcionante para a Grécia, supera o que acredita ser apenas uma fase, casa-se de modo burocrático e mantém um relacionamento com a esposa onde até o sexo é uma questão formal. Maurice, incapaz de lidar com a rejeição, se entrega à depressão, frequentando sessões de hipnose em busca de uma "cura gay". Aos poucos aceita a ideia de viver uma meia-vida, ocupando um espaço de semi-invisibilidade que cruza com outra: a social, na figura do jovem guarda-caças Alec. Há encontros e desencontros que culminam num momento tocante dentro do Museu Britânico, que conduz à um confronto final e tristonho entre Maurice e Clive.
“Eu teria sido seu até o fim se quisesse ficar comigo, mas agora sou de outra pessoa - não posso ficar me lamuriando para sempre - e ele é meu de um modo que o ofende, mas por que não para de ficar sendo ofendido e se ocupa de sua própria felicidade?"
Gregory Woods nota que, se Maurice tivesse um final trágico, teria sido tranquilamente publicado em sua época, quando a figura do homossexual era aceita contanto atada à necessidade de um final punitivo. "Forster reconheceu o que acontecia na literatura do recém-nomeado "indivíduo homossexual", mas não conseguia encontrar os recursos com o qual dar conta da nova tendência". De modo tragicômico, ao ser publicado em 1971, apenas dois anos após Stonewall, já não havia mais escândalo algum para causar.

Invisibilidades
A mesma invisibilidade que oculta Maurice dos olhos da sua sociedade, possibilita que ele viva plenamente e planeje sua fuga com Alex - para o interior, para o campo, para o espaço mítico dos bosques. O livro foi adaptado para os cinemas em 1987 pela dupla Ismail Merchant e James Ivory, dupla que se consagrara pouco antes com o oscarizado Uma Janela para o Amor (adaptado do Um Quarto com Vista), que nos anos seguinte ainda adaptaria Retorno a Howard's End de Forster e o Vestígios do Dia de Kazuo Ishiguro. Maurice concorreu ao Oscar de Melhor Figurino e lançou a carreira do então novato Hugh Grant como Clive e de Rupert Graves (o Lestrade da série Sherlock) como Alec.

Sobre o filme, Roger Ebert notou o grande desafio de relacionamento entre Maurice e Alec não era tanto a barreira do preconceito sexual, quando a questão de classes, cujas barreiras rígidas não dariam aos dois recursos para superar um relacionamento para além da atração sexual.

Curiosamente, as duas figuras reais que inspiraram o livro romperam de fato essa barreira: Edward Carpenter, poeta pioneiro no ativismo pelos direitos dos homossexuais, viveu por trinta anos junto de George Merrill, que tinha origem humilde e sem educação formal. Foi numa visita à casa de ambos que, num gesto de carinho informal, o modo como Merrill tocou as costas do rígido e enrustido Forster, que este teve a ideia de uma história sobre um relacionamento duradouro entre dois homens sendo construido. Em tempos que o casamento igualitário volta à pauta, a relevância de Maurice foi discutida num artigo da revista New Yorker.

E. M. Forster
Depois que Maurice foi escrito, houve uma mudança na atitude do público quanto a esse aspecto: a conversão da ignorância e terror em familiaridade e desprezo. Não foi a mudança para o qual Edward Carpenter havia lutado. Ele ansiara por um reconhecimento generoso de uma emoção e a reintegração de algo primitivo ao dia-a-dia. (...) Não haviamos percebido que aquilo que o público realmente abomina na homossexualidade não é a coisa em si, mas o fato de ser obrigado a pensar nela. Se ela pudesse ser inserida em nosso meio de forma desapercebida ou então fosse legalizada da noite para o dia, (...) haveria poucos protestos. Infelizmente, só pode ser legalizada por um parlamento, e membros do parlamento são forçados a pensar ou fingir que pensam. - E. M. Forster

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